Senti minha traqueia dar um nó duplo que nem o cadarço que meu pai amarrava antes de eu ir pro colégio. Diante de mim, em menos de 2 segundos, como uma faísca de eletricidade da tomada que explode, a imagem do rapaz que trabalha na lavanderia que uso semanalmente. Passei na garupa do mototaxista, voltando pra casa num domingo à noite, na hora do Fantástico, se existisse um Fantástico na Indonésia. A imagem em si não tinha nada de especial que evocasse aquele aperto nas tripas do meu pescoço. Ele estava agachado do lado de fora da lavanderia fumando um cigarro. Ele me chama de Cameela e vem buscar minhas roupas sujas toda semana e traz elas de volta no dia seguinte, todas engomadas, cheirosas e dobradas. Sempre falo que ele pode ficar com o troco, coisa de 80 centavos, e ele sempre me pergunta, surpreso: tem certeza? O sorriso se abre imediatamente, como se eu o tivesse presenteado com uma viagem pra Disney. Mainha tinha disso, de ser tomada da sobrancelha às unhas dos pés por uma mistura de pena e compaixão por pessoas aleatórias, e caía no choro. Agora eu choro por nós duas. Bom, nesse caso, o nó da garganta entupiu a represa lacrimal e eu percebi que teria que apelar para drogas mais fortes.
Em casa, banhada e no meu pijama engomado e cheiroso, me aninhei no sofá e coloquei o primeiro episódio de This Is Us. Venho adiando essa série com o mesmo empenho em que adiava a leitura de Uma Vida Pequena. 3 episódios depois, com a garganta doendo fisicamente de tão apertada vendo (o gostoso d)o Milo Ventimiglia ser um pai maravilhoso, a cena que se repetiu em momentos diferentes ecoou na minha cabeça por horas antes de dormir. Ao se despedir de cada filho, a ordem colada na testa com um beijo. Se divirta. As crianças indo pra escola. Se divirta. As crianças indo fazer tarefa de casa. Se divirta. Meus olhos cor de antônimo escorreram na fronha engomada e cheirosa.
Aos 32 anos, me questiono se sei me divertir. Me comportar, ah, isso eu poderia até dar um curso no Telecurso 2000, se é que ainda existe. Entre o clique do cadeado sendo trancado e a vibração do motor do carro, a ordem sendo colocada nos meus ombros, como uma mochila com livros demais. Você se comporte. A mochila pesada demais que me fazia estacionária, assistindo tudo que eu poderia querer ser, carregando o não dito. Seja quem eu quero que você seja. Não seja você, jamais você. Ser você é errado, é desobediência. Se comporte. Existe um jeito de se vestir, de falar, de sentar, de pedir água, de colocar o copo na pia, de respirar, de não incomodar ninguém. Jamais incomode ninguém. Se comporte. Tirar a mochila das costas significava apanhar assim que a vibração do motor do carro cessava e o cadeado soltava outro clique. Você fez o que achava que queria, agora precisa ser punida, cadê meu cinto. Você não fez o que eu queria que você adivinhasse que eu queria que você fizesse. O se comporte é isso. Vem assim, sozinho, sem manual, sem lista numerada do que pode e do que não pode. É isto, se comporte. Exista de uma maneira que não incomoda ninguém, que não me aborreça. Exista na ponta dos pés, observando tudo ao seu redor e caiba ali, despercebida, invisível, obediente.
Aos 32 anos, morando sozinha em outro continente, construindo casa e afetos em terra desconhecida, eu me pego querendo caber despercebida, invisível, obediente. Uma coleção de raios-x infinitos, com cada pessoa que cruza o meu caminho, fazendo um scan sobre o que é esperado de mim, qual o tamanho da minha brecha. Traduzindo idiomas e culturas na minha cabeça, será que aquele silêncio foi o insulto do eu não me comportando reverberando ou só um silêncio? O se comporte amarra minha garganta com nó duplo e eu não choro na garupa da moto pra não incomodar o mototaxista.
Esse texto, tal qual uma cebola, cheio de camadas. Deve ser por isso que faz chorar. 🌷#batalhadekleenex