"Você precisa deixar sua mãe ir", a cartomante me avisou como quem responde que o elevador vai descer. "Prepare a comida preferida dela, sirva dois pratos na mesa, coma o seu, e depois jogue o dela no lixo mentalizando que ela precisa te deixar". Minhas sobrancelhas escorreram em cima do meu nariz, siamesas. Ela explicou que Mainha precisa seguir a jornada espiritual dela, e que ela não pode fazer isso enquanto eu continuar segurando a mão dela nesse plano. Continuei calada, meu rosto se contorcendo como se alguém tivesse me pedido pra explicar em libras que gosto tem a cor azul.
Minha novela preferida da infância era Carinha de Anjo. Era sobre uma menina que tinha perdido a mãe e agora vivia em um orfanato. Ela e a mãe continuavam melhores amigas e, nos intervalos das aulas, a menina ia até a despensa encontrar com o fantasma da mãe, que, obviamente por ser uma novela infantil, era uma atriz linda e iluminada. Eu e Mainha assistíamos Carinha de Anjo juntas todas as noites da cama que dividimos por 15 anos. "Mainha, promete que vai vir me ver quando tu morrer?" Mainha ria e dizia que sim, é claro que ela viria me ver todos os dias.
Quando Mainha de fato morreu, eu, apavorada de medo de fantasmas, lembrei com arrependimento gutural do meu pedido, feito 10 anos antes. Eu rezava todos os dias: Mainha, fica aí onde tu tá, pelo amor de deus, mas se for pra vir, que seja em horário comercial e em público, não me venha ranger porta de madrugada.
E assim passei os próximos 14 anos. Até que, ano passado, comecei a sentir Mainha. Não como uma entidade, uma presença forte, mas como um vento leve que assanha a franja. Fui me atrevendo, aos poucos, a fazer pedidos e perguntas. Se não for muito incômodo, será que dava pra tu mexer uns pauzinhos aí em cima e me ajudar com essa treta aqui? Quando dei por mim, eu estava vivendo minha própria novela ruim do SBT. Eu era um plural de novo, cada vez menos amputado, não mais um singular que tenta enfiar um S onde não cabe.
Resolvi seguir o conselho da cartomante e preparei uma panela de Arroz de Doente, como chamávamos. Arroz só com água e sal, sem alho, óleo ou tempero. É importante que esteja empapado. Arroz de doente não pode ser soltinho, tem que ser quase um mingau. Abri a sardinha enlatada molho de tomate e esquentei na mini frigideira do ovo. Também sem tempero, do jeito que vem da lata. Servi dois pratos fumegantes na mesa. E foi nessa hora que o espírito rebelde de Mainha borbulhou dentro de mim, e ao invés de pedir pra que ela me deixasse, eu disse: tem refri na geladeira, pode ir deitar depois do almoço se quiser, deixa a louça que mais tarde a gente limpa.
A gente. Nós. Nós duas. O S que me faz plural é de Suely.
Muito bom!!
Oi, eu sou a mensageira da Suely e vim perguntar se, da próxima vez, por acaso, rola uma sobremesinha?
Que texto incrível, meu bb! ♥️